A lei não veda cessão de advogado público para a Justiça – SINPROFAZ

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21 de junho de 2012

A lei não veda cessão de advogado público para a Justiça


Por Paulo César Negrão de Lacerda

A Ordem dos Advogados do Brasil — Seção do Estado do Rio de Janeiro (OAB-RJ) apresentou representação junto ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), objetivando a instauração de procedimento de controle administrativo, em razão da nomeação de procurador da Fazenda Nacional para o exercício de cargo em comissão de assessor judiciário, no Tribunal Regional Federa da 2ª Região.

Dentre os fundamentos apresentados pela OAB-RJ, destaca-se o suposto comprometimento do equilíbrio do Poder Judiciário, em razão da nomeação de assessores oriundos da advocacia pública.

Nas palavras explicitadas na representação em questão, tal nomeação colocaria “em xeque a isenção do Judiciário, causando desequilíbrio de forças no processo, uma vez que os procuradores da Fazenda Nacional atuam representando uma das partes nos processos que envolvem matéria tributária de interesse da União Federal”.

Para aferir a procedência da referida representação, é preciso examinar, primeiramente, se tal cessão estaria em consonância com a Constituição e com as leis em vigor.

Como se sabe, as funções de confiança e os cargos em comissão estão expressamente previstos no artigo 37, incisos II e V, da Carta da República: “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

(…)
II — a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

(…)
V — as funções de confiança, exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo, e os cargos em comissão, a serem preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos previstos em lei, destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) (…)” (grifos nossos).

Por seu turno, o artigo 93, da Lei 8.112/1990, que disciplina a cessão de servidores para exercício de cargo comissionado, dispõe que “o servidor poderá ser cedido para ter exercício em outro órgão ou entidade dos Poderes da União, dos estados, ou do Distrito Federal e dos municípios”, na hipótese de “exercício de cargo em comissão ou função de confiança”.

O dispositivo em foco restou regulamentado pelo Decreto 4.050/2001, que, igualmente, prevê a cessão de servidor para “outro órgão ou entidade dos Poderes da União”.

De pronto, pode-se, então, afirmar que a ordem legal, claramente, prevê e disciplina a cessão de servidores entre os poderes da União. Cumpre, então, verificar se há alguma especificidade no caso dos advogados públicos, nomeadamente, dos membros da Advocacia-Geral da União.

A Lei Orgânica das carreiras da Advocacia-Geral da União (Lei Complementar 73/93), em seu artigo 26, esclarece que os membros daquelas carreiras têm os direitos assegurados pela Lei 8.112/90, ou seja, também estão submetidos à legislação que disciplina os servidores públicos em geral, salvo, naturalmente, se houver alguma vedação específica prevista naquela lei complementar, o que, à evidência, não é o caso.

Destarte, é certo concluir, com tranquilidade, que o Direito brasileiro não veda a cessão de servidores entre os poderes da União, sejam eles advogados públicos ou não, regulamentando devidamente a hipótese.

Mesmo havendo respaldo na legislação, cumpre verificar, ainda, se haveria a suposta violação à isenção do Judiciário, que causaria desequilíbrio de forças no processo, como aludido pela OAB-RJ.

Nessa senda, é preciso ter em mente, por primeiro, o óbvio aspecto de que a atividade jurisdicional é atribuição exclusiva e indeclinável do magistrado, sobre quem pesa toda a responsabilidade e todo o ônus da árdua tarefa de julgar. Portanto, em princípio, é a isenção e o equilíbrio do magistrado que se revelam como condições fundamentais para a imparcialidade do julgamento, não as do mero assessor, subordinado ao magistrado.

Por seu turno, a alegação de que o advogado público, cedido para ocupar cargo de assessor no Poder Judiciário, seguiria vinculado à Fazenda não se sustenta, haja vista que, na hipótese de cessão, o advogado público é afastado de suas funções e atribuições originárias e passa a exercer, em caráter exclusivo, o cargo comissionado de assessor, sendo-lhe vedado o exercício da advocacia, mesmo a institucional.

Com efeito, o artigo 12, inciso XVII, da Resolução 3/2008, do Conselho da Justiça Federal, cuida de estabelecer que, para tomar posse no cargo comissionado de assessor judiciário, CJ-2, o advogado público deve comprovar haver requerido a licença dos quadros da OAB em que esteja inscrito.

Sem dúvida, o advogado público sem inscrição regular perante a OAB ou licenciado, como no caso vertente, já não está habilitado a advogar para quem quer que seja, por força do artigo 3°, caput e parágrafo 1°, da Lei 8.906/1994 (Estatuto da Advocacia).

Ou seja, uma vez cedido, o advogado público perde a condição de advogado, e, por isso mesmo, já não deve mais ser parcial, i.e., pugnar pelos interesses de seu antigo cliente, in casu, a Fazenda Pública. Muito ao revés, mercê de seu juramento, prestado na forma do artigo 12, XVII, anteriormente mencionado, seu dever passa a ser o da imparcialidade e sua subordinação ao magistrado assessorado.

Também não deve impressionar a tese de que os advogados públicos são remunerados pelo erário e, assim, de alguma forma, seriam “sócios” do Fisco, haja vista que os membros da advocacia pública federal são remunerados com recursos do Tesouro Nacional, da mesma forma que todos os juízes federais e membros do Ministério Público Federal, conforme os artigos 2° e 74, da Constituição.

Importante esclarecer, outrossim, que a remuneração dos membros da advocacia pública federal é fixa. Ou seja, não varia ao sabor do sucesso ou insucesso judicial do Fisco, assim como a de magistrados e procuradores da República (art. 1°, caput, da Lei 11.358/2006, com a redação dada pela Lei 11.490/2007).

O advogado público, portanto, uma vez cedido e empossado em cargo de assessor no Poder Judiciário, deixa de ter qualquer interesse, seja jurídico, seja econômico, no resultado das causas sob as quais é chamado a prestar seus serviços. Seu único interesse é o de colaborar da melhor forma possível com o trabalho do magistrado a que estiver vinculado. Não há, pois, qualquer conflito de interesses.

Portanto, se o advogado público, após sua cessão, é afastado dos quadros da OAB e não mais pode advogar, se não tem mais o dever de parcialidade ou de zelar de maneira especial pela Fazenda Pública na condição de seu representante judicial, se a legislação pátria não veda a aludida cessão, onde então residiria a violação à isenção do Poder Judiciário?

Em uma suposta formação ideológica do advogado público? Conforme a afirmação feita pelo senhor subprocurador da OAB-RJ, em entrevistas publicadas nesta ConJur[1] e no Jornal Valor Econômico do dia 19 do mês em curso (“É uma questão de ideologia de procuração. A pessoa que foi formada na Procuradoria e que vai para o tribunal não vai conseguir ser neutra na análise”).

Ora, tal afirmação faz carga contra a capacidade profissional dos advogados públicos, reduzidos à condição de autômatos que apenas saberiam reproduzir a suposta “formação” que lhes conferiria a advocacia pública. Como profissionais, seriam condenados a defender o Fisco eternamente, sem capacidade, por defeito de formação, para exercer qualquer outro cargo que não o de advogado público.

Essa tese, sobretudo, não se coaduna com a realidade sensível, eis que muitos advogados públicos exerceram anteriormente a advocacia em caráter privado. Muitos advogados tributaristas foram procuradores da Fazenda, assim como muitos juízes foram procuradores. De fato, alguns dos mais notáveis tributaristas e constitucionalistas em atividade são ou foram advogados públicos, dentre eles, os eminentes professores Ricardo Lobo Torres e Luis Roberto Barroso. Sem dúvida, a experiência na advocacia pública e na defesa do Estado os engrandeceu como profissionais, não o contrário, como a afirmação acima faz parecer.


Ademais, note-se que a própria OAB-RJ indicou nada menos do que 2 (dois) procuradores da Fazenda Nacional (Marcus Abraham e Ronaldo Campos e Silva) na última lista sêxtupla para o preenchimento de vaga aberta para o quinto constitucional do egrégio TRF-2ª Região. O mesmo tribunal objeto da representação em foco.

Tais procuradores — que mereceram, inclusive, o voto de um dos autores e defensores da representação em questão, Luiz Gustavo Bichara[2], vice-presidente da Comissão Especial de Assuntos Tributários da OAB-RJ — acaso, estariam infensos à “ideologia da procuração”, a que alude o senhor subprocurador da OAB-RJ? Por quais motivos?

Nem se diga que a situação, então, seria diversa, eis que os procuradores, eventualmente, empossados na condição de desembargadores perderiam inteiramente seu vínculo com a Fazenda, pois, como visto anteriormente, os advogados públicos, na condição de assessores, também o perdem (na verdade, os advogados públicos perdem seu vínculo com a própria advocacia, pois são licenciados dos quadros da OAB, como visto).

Também não procederia a, eventual, alegação de que a desvinculação de procuradores nomeados desembargadores seria definitiva, enquanto a de assessores seria meramente transitória, para, daí, concluir que, por transitória, a desvinculação dos assessores não seria suficiente para garantir sua imparcialidade.

Os cargos de advogado-geral da União e de ministro da Justiça, cujos provimentos também são essencialmente transitórios, têm sido preenchidos por advogados com notória atuação no âmbito privado — como é o caso, v.g., dos ministros Márcio Thomaz Bastos (Justiça) e Dias Toffoli (AGU) — e ninguém em sã consciência jamais duvidou que advogados, ainda que donos de grandes bancas de advocacia, pudessem exercer, com dignidade, isenção e competência, aqueles honrosos cargos.

Em verdade, a representação em causa parece desconsiderar um fato evidente: os advogados públicos são, antes de tudo, advogados. Capazes, portanto, de exercer todos os muitos papéis e desafios que se afiguram para os operadores do Direito. Hoje, defendem o Fisco. Amanhã, afastados da advocacia pública, podem estar a defender o contribuinte.

Quando a lei não lhes veda a advocacia fora das atribuições institucionais, como no caso dos procuradores do Estado do Rio de Janeiro, podem, inclusive, desempenhar os dois papéis: ora defensores do Fisco Estadual, como procuradores, ora defensores dos contribuintes em face do Fisco Federal, como advogados. Sempre com invulgar competência.

Oportuno, finalmente, destacar que a situação em debate não é uma exceção brasileira, como se vê do Decreto-Lei 545,de 14 de dezembro de 1999[3], que organiza a composição e funcionamento da secretaria e dos serviços de apoio do Tribunal Constitucional Português, que, em seu artigo 21, 1, assim dispõe:

“1 — O Presidente do Tribunal Constitucional pode recorrer à requisição de funcionários e agentes da administração directa e indirecta do Estado, incluindo empresas públicas, bem como da administração local, para o exercício de funções de apoio técnico e administrativo ao respectivo Gabinete ou recorrer a contratos em regime de prestação de serviços, os quais caducam automaticamente com a sua cessação de funções.”

Lembro-me, vivamente, do dia em que o atual presidente da OAB-RJ pediu votos aos procuradores da Fazenda Nacional, por ocasião de sua reeleição. Naquela oportunidade, declinei, entusiasmado, meu apoio pessoal, assim como muitos outros colegas.

Agora, convido todos os advogados públicos do Rio de Janeiro a uma profunda reflexão, pois, aparentemente, na ótica, hoje, prevalente na OAB-RJ, devemos ter menos direitos do que os demais advogados, eis que a representação em tablado, se for acolhida, importará em criar mais uma vedação exclusiva para os advogados públicos, além de todas aquelas que a lei já nos impõe.


[1] Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2012-jun-15/procuradora-cedida-assessora-trf-pivo-briga-cnj> Acesso em: 19 jun.2012

[2] Conforme noticiado pelo sítio eletrônico da OAB/RJ em 1º de março de 2012. Disponível em: <http://www.oabrj.org.br/detalheNoticia/69892/OABRJ-age-contra-sobrecarga-de-varas-e-cessao-de-procuradores.html> Acesso em: 19 jun.2012

[3] Disponível em: <http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/legislacao0202.html#art21> Acesso em 19 jun.2012.


Paulo César Negrão de Lacerda é procurador da Fazenda Nacional no Rio de Janeiro.

Revista Consultor Jurídico, 20 de junho de 2012



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