Advocacia de Estado e de governo na consultoria jurídica – SINPROFAZ

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14 de setembro de 2012

Advocacia de Estado e de governo na consultoria jurídica


Por Julio de Melo Ribeiro

Recentemente, intensificou-se, entre os membros da Advocacia-Geral da União, o debate acerca da exclusividade do exercício das funções de consultoria e assessoramento jurídicos do Poder Executivo por advogados concursados. Discussão que mantém estreito vínculo com a polêmica da advocacia de Estado versus advocacia de governo. A par de alguns argumentos político-jurídicos suscitados pelos defensores de uma ou outra teses, algumas questões me parece importante destacar.

Dada a respeitabilidade tanto dos defensores da opinião de que a consultoria jurídica da administração pública é função privativa de advogados concursados quanto dos que defendem a tese oposta, tenho por necessária a seguinte premissa: a certeza de bons propósitos. Quem defende a mencionada exclusividade não o faz por interesses corporativistas, mas porque realmente acredita que advogados concursados estão menos sujeitos à corrupção e que isso é fundamental numa área tão sensível quanto historicamente problemática como a do controle de legalidade das políticas públicas (processos de licitação e acompanhamento de contratos e convênios aqui incluídos). Já os que se alinham no front oposto certamente não objetivam se locupletar dos possíveis desvios a que a consultoria privada dá ensejo, mas acreditam, de fato, que a liberdade de nomeação, pelos ministros de Estado, dos advogados incumbidos de lhes prestar assessor amento jurídico (ou dos chefes, pelo menos) é uma consequência imperiosa do regime democrático. Legitimidade democrática ou probidade na administração pública? Qual a escolha certa a fazer?

Esse é um falso dilema, ouso ajuizar. A tese de que os ministros de Estado devem ter ampla liberdade para escolher os advogados que o auxiliarão na implementação das políticas públicas democraticamente apresentadas ao eleitor, sob pena de se inviabilizar a concretização das escolhas populares, contém, a meu ver, um irremediável equívoco de premissa: a Advocacia-Geral da União não é órgão formulador de políticas públicas, sendo sua legitimidade fundada, não no voto popular, mas na Constituição.

A advocacia pública cumpre a importante função de formatar juridicamente as ações governamentais, exercendo o controle de juridicidade dos atos administrativos. Executa essa tarefa, no entanto, sem substituir o gestor público. Um advogado da União, na consultoria e assessoramento jurídicos do Poder Executivo, diz o que seja de direito, mas sem se dar o direito de questionar o mérito das escolhas políticas do governo. Ademais, mesmo nos casos em que a lei torna obrigatória a emissão prévia de um parecer jurídico, a decisão final, inclusive quanto à questão de direito, é do agente público legitimado pelas urnas. Pelo que a livre nomeação e exoneração de advogados por ministros de Estado não é um pressuposto do regime democrático. A não ser que se admita a intromissão do advogado na esfera de discricionariedade do governante, a Advocacia-Geral da União não precisa de “arejamento” político-partidário.

A legitimidade dos órgãos da advocacia pública, já se vê, não decola do voto popular, o mesmo se dando com o Ministério Público (órgão, inclusive, que está na origem histórica da Advocacia-Geral da União), a Defensoria Pública e o próprio Poder Judiciário. O compromisso de juízes, promotores de justiça, defensores e advogados públicos é com a Constituição, fonte do dever-poder desses agentes do Estado. Tais instituições retiram a legitimidade da Constituição, e exatamente por isso também não se afastam da ideia de democracia. É que a vontade permanente do povo, aquela expressada no momento constituinte do Estado brasileiro, foi a de criar um Poder (o Judiciário) e alguns aparelhos “essenciais à Justiça”, todos marcados pelo traço da independência técnica. Independência que, para esses órgãos, é tão fundamental quanto o voto popular o é para o Congresso Nacional. Independência, ainda uma vez, que viabiliza o p róprio Estado de Direito, na medida em que o desassombro institucional é que leva um juiz a declarar a inconstitucionalidade de uma lei votada por representantes eleitos pelo povo ou que conduz um advogado da União a emitir parecer jurídico contrário à vontade do governante legitimado nas urnas.

O fato é que o instituto jurídico do concurso público consiste num dos mais robustos pilares da independência técnica dos órgãos da advocacia pública. Em caso de conflito entre a vontade da lei e a do governante, o advogado, na atividade de consultoria e assessoramento jurídicos, deve sempre opinar pela prevalência da primeira, o que já demonstra a total incompatibilidade dessa função “essencial à Justiça” com a existência de cargos de livre nomeação e exoneração. Reforçando o juízo: a legitimidade democrática dos órgãos da advocacia pública se funda na Constituição e no exercício independente da tarefa de servir à ordem jurídica. Nesse cenário, a livre nomeação e exoneração de advogados por ministros de Estado, em vez de reverenciar o regime democrático, conspurca-o.

Enquanto isso, do outro lado da balança está o argumento de que advogados concursados estão menos sujeitos à corrupção. O juízo me parece adequado, pelo menos como regra geral. Explico: é claro que não se está a dizer que advogados públicos de carreira são melhores ou mais éticos do que os outros, nem que há uma presunção de má-fé dos políticos-nomeantes. Não é nada disso! O que se tem por indiscutível é que, exercendo um cargo de livre nomeação e exoneração, o compromisso maior do advogado passa a ser com as vontades do governante, quando a ordem jurídica é que deveria estar no topo das prioridades. Se, eventualmente, a vontade de quem governa for a de atropelar a Constituição e as leis (não falo aqui, por óbvio, do exercício da discricionariedade própria – e constitucionalmente legítima – dos gestores públicos), o advogado “comissionado”, que não se submeteu a concurso público e não tem a garantia da estabi lidade (como visto acima, instrumentos essenciais da independência técnica), está mais propenso a “fazer vista grossa” do que aquele que não põe o seu cargo em risco. É da natureza humana querer salvar o próprio pescoço (no caso, o emprego).

Ademais, se olharmos não muito longe na história do Brasil, o que veremos é um passado (em alguns lugares, ainda um presente) de patrimonialismo na administração pública. Historicamente, os cargos públicos foram distribuídos aos “amigos do rei” e nem sempre para a satisfação do interesse público. Logo, o salutar princípio constitucional do concurso público, mais do que concretização do anseio por igualdade, é, sim, tentativa de resposta a desvios de finalidade na atuação administrativa.

Todo o debate aqui analisado tem relação direta com a polêmica da advocacia de Estado versus advocacia de governo. Mais: a diferença entre advocacia de Estado e advocacia de governo está, exatamente, na forma pela qual são recrutados os advogados e no nível de independência deles. Nada a ver, portanto, com o objeto em si da atuação profissional. Os advogados públicos são chamados a defender uma ação permanente do Estado, uma política transitória do governo ou até a própria pessoa do governante, no regular exercício da função pública. Tudo pode consistir tanto numa advocacia de Estado quanto numa advocacia de governo.

Será advocacia de Estado se os advogados forem recrutados por modo impessoal e tiverem a independência suficiente para, em casos-limite, optar pelo respeito à Constituição e às leis. Será advocacia de governo se os advogados forem livremente nomeados e exonerados pelo governante, ficando deles inteiramente reféns. Faz parte da rotina de uma advocacia de Estado patrocinar as causas do governo (advocacia para o governo). O que a descaracteriza é o aparelhamento do órgão pelos governantes (advocacia pelo governo). Daí, mais uma vez, a importância fundamental do concurso público.

Como se vê, decidir pela exclusividade do exercício das funções de consultoria e assessoramento jurídicos do Poder Executivo por advogados concursados, ao mesmo tempo em que não implica arredar um só milímetro do princípio democrático, importa no fortalecimento de um dos mais relevantes valores republicanos: o da probidade na administração da coisa (res) pública. Dito isso, fica fácil saber qual a escolha certa. É aquela feita pela Constituição brasileira de 1988: uma advocacia de Estado, e não de governo. Uma advocacia, às vezes, até para o governo, mas nunca pelo governo.

Julio de Melo Ribeiro é advogado da União e especialista em Direito Constitucional.


Revista Consultor Jurídico, 13 de setembro de 2012



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